Quando Julia Ducournau foi anunciada na competição pela Palma de Ouro deste Festival de Cannes, todos imaginaram que ela traria mais um longa pensado para chocar –gráfico, sexy, violento, como os anteriores "Grave" e "Titane", com o qual venceu o prêmio máximo do evento há quatro anos.
Ela de fato chocou os espectadores nesta segunda-feira (19), mas por outros motivos. "Alpha" é estranhamente sensível, um trabalho de uma delicadeza que prova que a cineasta sa é de fato uma figura inventiva, disposta a provocar os lugares-comuns do cinema.
O filme até pertence ao "body horror", subgênero em que o terror é criado a partir de violações gráficas do corpo humano, como a cena em que uma menina mastiga o dedo da irmã, em "Grave", ou aquela em que a protagonista quebra a mandíbula de uma desconhecida com o peso de uma banqueta, em "Titane". Mas até nessa parte há ternura.
"Alpha" acompanha uma menina de 13 anos que, durante uma festa regada a álcool, é tatuada por um amigo, que usa uma agulha improvisada e compartilhada entre várias pessoas. O pânico da mãe, que é médica, logo denuncia que estamos em tempos de auge da epidemia de Aids, apesar de a doença nunca ser mencionada.
O vírus, no filme, petrifica a carne dos infectados, que se tornam estátuas de mármore, com veios avermelhados salientes. Enquanto a mãe, num trabalho excepcional da iraniana Golshifteh Farahani, espera os resultados dos exames, seu irmão retorna para casa depois de muitos anos.
Personagem de Tahar Rahim, Amin é usuário de drogas e, ao usar as agulhas de desconhecidos, se contaminou com o vírus. Sua fragilidade aterroriza mãe e filha, esta ainda perseguida na escola depois que os colegas descobrem sobre a tatuagem.
Com seus petrificados, "Alpha" joga com um realismo fantástico que dá originalidade a um tema muito retratado no cinema. Ajuda, também, o fato de estarmos adentrando a epidemia de Aids por meio das agulhas de tatuagens e drogas, em vez do sexo. Personagens gays aparecem, mas ao fundo, ajudando a romper estereótipos relacionados à doença.
Outro diretor a retornar a Cannes neste início da segunda metade da programação foi o sueco Tarik Saleh. De ascendência egípcia, ele mais uma vez usa a segurança da produção audiovisual europeia para criticar o país de origem do pai, em "Eagles of the Republic", algo como "águias da república".
Ele repete os temas já abordados em "Garoto dos Céus", que lhe rendeu o prêmio de roteiro há três anos, denunciando a corrupção, as chantagens e a brutalidade institucionalizadas no Egito. Se antes o fez no universo religioso, agora se volta à classe política.
De certa forma, "Eagles of the Republic" é um bom complemento a "O Agente Secreto", do pernambucano Kleber Mendonça Filho e exibido neste domingo, também na competição pela Palma de Ouro. Ambos são retratos da decadência moral de uma nação, em tramas que mostram como Estados autoritários são arbitrários ao declarar guerra a seus cidadãos.
O cidadão que protagoniza o filme do sueco é o "faraó das telas", apelido do ator interpretado por Fares Fares. Estrela do cinema egípcio, ele vê sua posição política ser questionada quando Abdel Fattah el-Sisi chega à presidência por meio de um golpe.
Para mostrar lealdade ao regime –e evitar uma perseguição à sua família–, ele assina um contrato para viver o ditador num filme-propaganda que pretende glorificá-lo. Realidade e ficção, verdade e fake news, assim, se confundem numa narrativa ao mesmo tempo muito regionalizada, mas também em sintonia com o momento atual do mundo.
Mais uma vez, Saleh constrói um thriller político envolvente e original, distante dos clichês tão explorados pelo gênero no cinema de língua inglesa. Ganha, ainda, acompanhamento de uma empenhada trilha sonora de Alexander Desplat, que ajuda a dosar os momentos de humor, tragédia e tensão.